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Entre Mundos Urbanos

Daniel Corsi


“Mesmo que desejássemos fazê-lo, a nossa sociedade não seria capaz de sair de seu espaço. Ainda que o produza, uma sociedade é sempre sua prisioneira. Isso ocorre devido ao espaço ser a base comum para todas as atividades, muitas vezes usado politicamente, a fim de dar uma aparência de coerência através da ocultação de suas contradições sociais.” (TSCHUMI, 1996: 22) (1) 


Liberdades e Limites

Há tempos presenciamos no contexto urbano contemporâneo em que vivemos um paradoxo crítico entre as ideias de liberdade e limite. Um dualismo extremo onde ambas ideias se apresentam num estado de permanente colisão e interdependência. A liberdade, glorificada pela busca moderna da autonomia absoluta do ser, é-nos suposta como uma qualidade intrínseca de nossas vidas, ainda que consideravelmente superficial dentro dos inúmeros âmbitos de valores éticos, sociais e culturais que a constituem. O limite – ou segurança, como compreendem alguns – faz-se impor não como estrutura imprescindível para a estabilização da primeira ideia, mas como instrumento de sua determinação, a partir de uma condição de controle e opressão.

Perguntemo-nos então: quais são as liberdades e os limites das cidades? Podemos encontrá-los numa metrópole como esta que habitamos? Ambas ideias são complexas, plurais e constituídas por diversas esferas: sociais, políticas, culturais, éticas e materiais. Parece distante a possibilidade de compreender uma cidade como São Paulo através dessa leitura, porém, ainda que suas estruturas se encontrem rarefeitas, refletir sobre alguns acontecimentos capazes de revelar que é possível a busca por uma linha tênue entre ambos conceitos, mostra-nos que a cidade, por si só, vem reverberando tais questões.

São estes acontecimentos que, a partir do objeto da pesquisa, aqui nos interessam e que apontam como as liberdades de ação e criação se fazem notáveis no cenário urbano dos últimos tempos. Ilusões ou instrumentos de poder, fazem a cidade viva em sua urbanidade, em suas conglomerações, comemorações, protestos, manifestações, reuniões ou qualquer outra espécie de evento – termo sobre o qual nos aprofundaremos mais adiante. São eles que nos colocam diante de novas possíveis interpretações sobre o que é o espaço e o que é o tempo, bem como de experiências que, pelo fato de seu acontecimento presente ou passado, podem ser tomadas como eventos elucidativos da singularidade que o mero reconhecimento da superposição destas duas dimensões pode criar. Ao falar de um suposto contexto destes acontecimentos urbanos, David Harvey aponta o termo ‘Heterotopia’ de Michel Foucault que “designa a coexistência, num espaço impossível’, de um ‘grade número de mundos possíveis ‘fragmentários, ou, ‘mais simplesmente espaços incomensuráveis que são justapostos ou superpostos uns aos outros.” (HARVEY, 1992: 52).

Se falamos de espaço, falamos de arquitetura. Se falamos de impulsos sociais, falamos de cidade. Logo, revela-se de ampla pertinência pensarmos sobre as dinâmicas destes ‘mundos heterotópicos’. Aliam-se a esta preocupação os recorrentes questionamentos contemporâneos sobre como a arquitetura pode ou deve se mostrar imprescindível na ascensão destes fenômenos, contribuindo e participando da construção de situações para as apropriações urbanas e sociais da paisagem que nos envolve.

O arquiteto franco-suíço Bernard Tschumi, já no início da década de 1980, teorizava sobre conceitos semelhantes numa série de textos publicados sobre o título de ‘Arquitetura e Limites’. Num contexto Pós-Moderno de debate arquitetônico, o arquiteto passa a conduzir para outra direção seus interesses sobre as relações entre arquitetura e cidade, na tentativa de fazer com que aspectos estilísticos e linguísticos não prevalecessem sobre o real potencial da arquitetura: “O pensamento arquitetônico não é uma simples questão de opor o Zeitgeist ao Genius Loci, de opor questões conceituais a questões alegóricas ou alusões históricas a uma pesquisa purista.” (TSCHUMI apud NESBITT, 2006: 175).

A preocupação com o rumo da construção das cidades e de seus significados o faz refletir sobre uma nova consciência urbana, ou melhor, uma aceitação da fragmentação do espaço e do tempo na Pós-Modernidade. “As cidades tornaram-se desregulamentadas. Essa desregulamentação é reforçada pelo fato de que grande parte da cidade não pertence mais ao reino do visível. O que anteriormente era chamado de desenho urbano foi substituído por um conjunto de sistemas invisíveis. Por que os arquitetos falariam ainda sobre monumentos? Monumentos são invisíveis agora.” (TSCHUMI, 1996: 216) (2) Como fica evidente na citação acima, sua visão aponta para uma superação da ideia clássica da arquitetura como objeto impenetrável e autorreferente. O reconhecimento de que a cidade se constitui também de uma natureza invisível – movimentos, fluxos, forças, presenças, ausências, campos – é determinante para novos modos de como compreender e aceitar nossa paisagem contemporânea em toda sua complexidade.

Tschumi quer, sobretudo, refletir sobre uma arquitetura que se preste ao usuário não somente como programa funcional, mas principalmente como suporte que potencialize suas ações. Logo, mais do que a arquitetura em si, aquilo com que deveríamos nos preocupar seria precisamente o espaço puro e os movimentos que nele ocorrem, o ‘entre’: “O lugar do ‘entre’, o espaço de todas as potencialidades, é ativado pelo movimento dos corpos no mesmo.” (TSCHUMI, 2000: 13) (3)

Para tanto, passa a ser necessário que acolhamos as pré-existências, tanto materiais como imateriais: relações potencializadas não somente pela consciência e apropriação das forças prévias ao ato arquitetônico, mas principalmente das novas dinâmicas que poderão surgir desses encontros imprevisíveis entre espaços e tempos indeterminados.

“Indiferença, segundo o qual a ideia e seu contexto são soberbamente ignorantes de si mesmos - uma espécie de colagem acidental em que ambos coexistem, mas não interagem. Disso podem resultar justaposições poéticas ou imposições irresponsáveis. Reciprocidade, segundo a qual o conceito de arquitetura e seu contexto interagem de perto entre si de forma complementar, de modo que eles parecem fundir-se em uma única entidade contínua. Conflito, segundo a qual o conceito arquitetônico é estrategicamente pensado para entrar em conflito com o seu contexto, em uma batalha de opostos em que ambos os protagonistas podem ter de negociar a sua própria sobrevivência.” (TSCHUMI, 2004: 11) (4)

Dentre as três possíveis relações entre contexto e conceito que Tschumi descreve nesta espécie de categorização, a última – o conflito – é a que mais nos interessa e que buscaremos explorar adiante.


Tempos e Espaços

Se entre as volatilidades contemporâneas se encontram nossos modos de interagir com as dinâmicas que definem nosso meio, o tempo é uma das mais críticas. Talvez como nunca antes, atualmente lindamos com uma indefinição significativa sobre o que é sua experiência, bem como o que ela pode definir tanto numa escala do sujeito como numa escala social. As proporções que assumem certos eventos paulistanos como a Virada Cultural, Paradas, Protestos ou Reuniões de grupos específicos, podem apontar algumas características de uma construção experiencial do tempo que cada vez mais clama a superação de sua vivencia exclusivamente individual.

Em nossa condição humana, podemos constatar que nos constituímos como seres fundamentalmente isolados em nossa própria existência individual. No entanto, encerrados em nossos corpos e experiências, é igualmente inerente um certo desejo de que o mundo das relações entre nós e aquilo que se encontra externamente seja transcendido por essa limitação original.

Diante da superficialidade dos valores e significados contemporâneos, este indivíduo –  consciente ou não de seu isolamento – clama cada vez mais por oportunidades de um 'reconhecimento' coletivo. Na carência crescente de uma lucidez própria sobre seu lugar no tempo e no espaço, resta-lhe a possibilidade de descobrir no encontro com o outro uma alternativa de construção de sentido para sua própria existência. Seu acolhimento em comunidades – sejam elas culturais ou idearias – torna-se imprescindível para corresponder à uma necessidade vital por sentido, ainda que este se defina frágil ou absolutamente alheio aquilo que lhe constitui.

É possível, então, supor a existência de uma espécie de tempo público e de um tempo privado dentro de um espaço que também se divide do mesmo modo. Assim, o tempo também se segmenta numa dimensão individual e noutra social e é precisamente na convergência necessária – e porque não desejada – de ambos que os eventos se justificam e se potencializam.

Esses eventos podem ser interpretados com tempos individuais que encontram meios de se reconhecerem no mundo de outros, através de expressões ou manifestações coletivas e simultâneas onde o tempo se evidencia em seu 'presente'.  Eis então outra fuga da ideia de tempo que sua coletivização corrobora: não existe um único tempo – cada indivíduo possui sua própria dimensão temporal. No entanto, esta liberdade fundamental traz igualmente um deslocamento do que de fato significa a experiência do presente – tempo fundamental, já que passado e futuro são instancias temporais peremptoriamente despregadas da realidade. A alteridade e os fenômenos provocados pelo encontro com o 'outro', tornam possível ao ser reconhecer a si mesmo no mundo alheio e, assim, fazer-se capaz de transcender seu isolamento privado por meio de incursões sociais nas quais se posiciona espacial e temporalmente. Desse modo, a busca por encontrar o real significado daquilo que vive acontece, precisamente, na invenção de uma dimensão estrangeira de sua realidade, naquilo que é distante de si e na apaziguadora 'revelação' que o suposto caráter de similitude existente entre aquilo sente e aquilo muito outros também aparentam sentir pode estabelecer. Isso nos demonstra que para a suportabilidade da vida, ainda que pautados sobre uma ideia de liberdade individual, faz-se imprescindível encontrarmos nossas limitações no âmbito coletivo e social que nos envolve.

A busca pelo tempo presente, a tentativa de dilatação do ponto indivisível que define o momento que chamamos de real, pode guardar também a própria contradição da instantaneidade, acentuada na atualidade. Como afirma Zygmunt Bauman, “O tempo instantâneo e sem substância do mundo do software é também um tempo sem consequências. ‘Instantaneidade’ significa realização imediata, ‘no ato’ – mas também exaustão e desaparecimento do interesse. A distância em tempo que separa o começo e o fim está diminuindo ou mesmo desaparecendo; as duas noções, que outrora eram usadas para marcar a passagem do tempo, e portanto calcular seu ‘valor perdido’, perderam muito de seu significado – que, como todos os significados, derivava de sua rígida oposição. Há apenas ‘momentos’ – pontos sem dimensões.” (BAUMAN, 2001: 137)

O que vemos ocorrer nestes encontros é a potencialização da experiência do presente, do instante. Instituem-se como construções de eventos compartilhados onde multidões se unem de modo espontâneo e desejante, fazendo, com isso, reverberar a dimensão destes acontecimentos quando se prolongam como memória e como fenômeno do ato realizado. Assim, constrói-se não apenas um ponto de convergência de indivíduos que configuram um estado social, mas também a potencialização virtual dos eventos contemporâneos como aponta Pierre Lévy: “A cibercultura é a expressão das aspiração de construção de um laço social, que não seria fundado nem sobre links territoriais, nem sobre relações institucionais, nem sobre as relações de poder, mas sobre a relação em torno de centros de interesses comuns, sobre jogo, sobre o compartilhamento do saber, sobre a aprendizagem cooperativa, sobre o processos abertos de colaboração. O apetite para as comunidades virtuais encontra um ideal de relação humana desterritorializada, transversal, livre. As comunidades virtuais são os motores, os atores, a vida diversa e surpreendente do universal contato.” (LÉVY, 1999, p.173)

Desse modo, como possíveis atuantes no universo de criação destes lugares – as cidades – torna-se determinante nos inquirirmos sobre como a arquitetura pode contribuir para a proposição destes espaços onde o indeterminado, e não apenas a atividade programada, aconteça. Na simultaneidade dos tempos que passam a existir quando cada pessoa vivencia um mesmo acontecimento – como nos tempos distintos daquele que 'observa' e daquele que é 'observado' – é necessário nos embasarmos sobre uma aceitação e acolhimento do imprevisível e na possibilidade de encontrar nele, através de uma ação associativa entre arquiteto e usuários, o lugar da pertinência atual da arquitetura, como aponta Bernard Tschumi: “No limite, essa pesquisa introduz uma preocupação relativa à noção de ‘sujeito’ e com o papel da ‘subjetividade’ na linguagem, diferenciando a linguagem com um sistema de signos de linguagem como um ato individualmente realizado.” (TSCHUMI apud NESBITT, 2006: 180)

Ao falarmos sobre certa experiência abstrata de um tempo privado e de um tempo público, isso também pode corresponder à concretude de um espaço privado e de um espaço público. Transpondo nossa restrição individual, em alguns momentos fazemos de nosso tempo e espaço privados, meios públicos, do mesmo modo que, em outros momentos, buscamos que tempos e espaços públicos sejam os nossos, apropriando-nos e, simultaneamente, cedendo-nos aos mundos urbanos.

Esses espaços se configuram como terrenos incertos, pois não estão programados para receber os eventos espontaneamente neles correntes. Por não possuir espaços cívicos fundamentais, a população da cidade de São Paulo passa a encontrar em suas ruas, avenidas, vales, praças e vazios, os lugares para que possa exercer sua civilidade. Uma paisagem urbana comprimida e restrita, que se reinventa no ato de ressignificar sua predominante dinâmica infra estrutural.

O que se tornam esses espaços quando os vemos transformados numa convergência social?  O que a presença da arquitetura implica sobre eles?

Localizado no centro de São Paulo, lugar que supostamente deveria significar o seu mais importante espaço cívico por toda sobreposição territorial e histórica que o define, o Vale do Anhangabaú seja talvez um exemplo imperativo destas transformações. As apropriações dele presenciadas nos mostram que a arquitetura – cidade construída – não pode ser entendida unicamente como uma matéria física espacial, mas também como uma interface na qual se age e a partir da qual se moldam certos acontecimentos. Como aponta Tschumi: “A arquitetura se define tanto pelos eventos que ocorrem em espaços como os seus próprios espaços.” (GA DOCUMENT EXTRA 10,1997: 68) (5)

É presente o consenso de que estes lugares sejam públicos por excelência. O fato de serem ‘esvaziados’ – ou materialmente abertos à sociedade, além de acolhedores de suas apropriações – parece nos induzir à frágil ideia de que uma democracia urbana prevaleça. No entanto, as forças invisíveis que atuam na caracterização da paisagem urbana superam a dimensão de sua arquitetura, fazendo com que a reverberação destes espaços seja também pautada pela maneira que recebem tais instrumentos sociais de expressão e, porque não, de poder: “Uma arquitetura definida simultaneamente como espaço e evento nos traz de volta questões políticas ou, mais precisamente, questões do espaço como algo relacionado à prática social. Se a arquitetura não é nem forma pura nem unicamente determinada por condições socioeconômicas ou funcionais, a busca de sua definição deve sempre expandir-se para uma dimensão urbana. Os complexos mecanismos sociais, econômicos e políticos que regem a expansão e a contração da cidade contemporânea não são ausentes da arquitetura e de seu uso social. O espaço sempre marca o território, a meio da prática social.” (TSCHUMI, 1996: 22) (6)

Portanto, para a compreensão das trocas entre mundos públicos e privados que presenciamos na cidade, é imprescindível reconhecermos a presença de outros poderes atuantes sobre estes mesmos mundos, e não somente os físicos-materiais.

Numa tentativa de amenizar as diferenças e ocultar a condição real das coisas, os estados de controle – públicos e privados – constroem momentos de vida urbana falsos e ilusórios. Se planejados para serem consumidos como 'espetáculos' sociais, tais eventos se tornam responsáveis por imprimir a falsa consciência no cidadão de que pertence aquele mundo e que é parte de uma construção coletiva. Estabelece-se uma condição onde, enquanto o indivíduo e o corpo social são levados a experimentar uma aparente espontaneidade do evento, na verdade, nada mais vivenciam do que um simulacro social das relações entre indivíduos e destes com a cidade: uma programação artificial e fortemente controlada do 'quando' e do 'como' indivíduos devam se reunir ou conviver.

Presenciamos então o acontecimento de dois mundos em nossa realidade urbana sem podermos compreender com clareza os limites de cada um. Se por um lado o espaço é programado pelos estados atuantes para que de sua apropriação não subvenha nenhuma ocorrência inesperada, por outro, num ato de intervenção, as pessoas passam a desprogramar estes espaços de modo a originar a autenticidade do evento, bem como a sua reverberação.

Assim, vemos em muitos fragmentos de nosso território urbano se sobreporem camadas de tempo e de espaço que suplantam sua memória material, participando da criação de rastros em sua 'substância' e, principalmente, na realidade daqueles que deles se apropriam em sintonia com a construção de sua própria memória individual. Talvez seja possível entender tais eventos como fenômenos radicais de deformação do espaço e de reverberação no tempo, ambos sendo dilatados pela ideia de uso, mas que, por reação, dilatam significativamente a percepção daqueles que os vivenciam.


Eventos e Colisões

Frente à pluralidade dos acontecimentos aqui abordados e com o objetivo de extrair de suas interpretações algumas relações vinculadas ao universo da arquitetura, torna-se bastante esclarecedora a apresentação de certos conceitos que vem se debruçando substancialmente sobre o tema. Não se pretende aqui abarcar uma compreensão completa sobre o que define suas diferentes intensidades e qualificações, pois esta mesma diversidade nos coloca diante de casos que podem ser interpretados tanto como um conjunto homogêneo e coerente como também fatos absolutamente distintos em suas causalidades. Assim sendo, uma primeira reflexão de caráter tautológico nos permite entender de que modo vemos algumas impressões tradicionais contrapostas encontrando, possivelmente, na revisão da ideia de 'programa' uma de suas mais significativas considerações:

"A ideia de 'Programa' deve ser distinguida da de ‘Evento’. Um programa é um conjunto determinado de ocorrências esperadas, uma lista de funções necessárias, muitas vezes baseadas no comportamento social, hábito ou costume. Em contraste, os eventos ocorrem como um conjunto indeterminado de resultados inesperados. Revelam potencialidades escondidas ou contradições em um programa, relacionando-os com uma configuração espacial particularmente apropriada (ou possivelmente excepcional), podem criar condições para a ocorrência de eventos inesperados. Por exemplo, pode-se combinar ou criar atividades programadas para que elas cobrem uma configuração espacial, de tal forma que, através da mistura de itens programáticos comuns ou de outra forma previsível, gerem eventos incomuns ou imprevisíveis. Muitas vezes tenho chamado essa configuração particular do espaço de ‘entre’." (TSCHUMI, 2000: 13) (7)

Bernard Tschumi nos apresenta o argumento de que se passamos a compreender os eventos imprevisíveis – ou 'não programados' – que invariavelmente ocorrem no espaço arquitetônico como fatos não caracterizados como eventos desvinculados do mesmo, mas sim como definidores de seu significado, podemos constatar que a arquitetura, em sim mesma, não possui significado algum. Fato que nos coloca diante da matéria como algo ‘mudo’ e de uma arquitetura que só pode originar algum sentido a partir dos eventos que dentro dela acontecem.

Essa enfática diferenciação entre programa e evento passa a revelar um entendimento diferente em relação à presença da arquitetura na cidade. Primeiramente desvela algumas contradições conceituais que até aquele momento – e por que não afirmar que ainda nos dias de hoje – prevaleciam sobre a ideia de seu papel. Junto a isso encontra-se a oportunidade de novas potencialidades serem exploradas por meio do ‘inesperado’ como força propulsora do acontecimento arquitetural. Tschumi nos mostra que no cenário urbano pós-industrial, já não podemos nos limitar às determinações de um programa encerrado em si mesmo e que, consequentemente, encerra igualmente o espaço. Ao contrário, devemos ampliar a natureza do espaço arquitetônico por meio do que lhe é fundamental: a liberdade ou, melhor dizendo, o imprevisível que emerge do encontro entre indivíduos. É a isso que o autor denomina de ‘Grau Zero’ da arquitetura: "Quando eu digo ‘Grau Zero’ me refiro a algo que não seja carregado de significado, que não seja carregado de preferências estéticas e formais. Algo que não seja culturalmente motivado. É uma tentativa de reduzir as coisas simplesmente para o locus de atividades." (GA DOCUMENT EXTRA 10, 1997: 110) (8)

Estamos diante de uma arquitetura concebida como uma plataforma de colisões. Nela, a tradicional ideia de arquitetura como uma totalidade constituída de elementos autônomos é superada: conceitos, percepções, experiências, espaços, programas, estruturas, imagens, significados devem poder se afetar num indeterminado de combinações sem qualquer hierarquia. A fluidez constante como fundamento: uma arquitetura viva redefinida a cada evento e que, nos ‘rastros’ acumulados de seus instantes presentes, vai se edificando sobre a experiência do ‘agora’, única possível assimilação concreta da realidade. A arquitetura deve se preocupar em como conceber estratégias que promovam essa potencialidade:

"A arquitetura não se define através das condições de desenho, mas pelo desenho de condições que deslocarão os aspectos mais tradicionais e regressivos de nossa sociedade e, simultaneamente, reorganizar esses elementos da forma mais libertadora, de modo que a nossa experiência se torne a experiência de eventos organizados e estrategiados através arquitetura. A palavra ‘estratégia’ chave para a arquitetura de hoje. Sem mais masterplans, sem mais localizações em lugares fixos, mas uma nova heterotopia. Isto é para o que as nossas cidades devem se esforçar e aquilo para que os arquitetos devam ajudar a alcançar intensificando a rica colisão de eventos e espaços." (TSCHUMI, 1996: 258) (9)

Junto a isso outro conceito do qual nos fala o arquiteto franco-suíço diz respeito à ideia de disjunção no qual, seguindo o entendimento anterior, estabelece que, dentro da complexa relação dos elementos que constituem a arquitetura, nenhum deles pode ser capaz de configurar uma síntese absoluta. O que temos então são sobreposições, justaposições, superposições, dissociações ou combinações de elementos que originam dinâmicas singulares fortes o suficiente para expandir essa natureza arquitetônica.

Desse modo, Tschumi nos aponta algumas estratégias possíveis capazes de atingir este objetivo. São elas: Crossprogramming, Transprogramming e Disprogramming, termos sobre os quais discorre da seguinte maneira:

"Crossprogramming: usando uma determinada configuração espacial de um programa não destinado a ele, ou seja, utilizando um prédio da igreja para jogar boliche. Similar ao deslocamento tipológico: a prefeitura dentro da configuração espacial de uma prisão ou um museu dentro de uma estrutura de parque de estacionamento. Referência: crossdressing. / Transprogramming: combinação de dois programas, independentemente de suas incompatibilidades, juntamente com suas respectivas configurações espaciais. Referência: planetário + montanha russa. / Disprogramming: Combinação de dois programas, em que uma configuração espacial necessária de programa A contamina programa B e configuração possível de B. O novo programa B podem ser extraídas das contradições contidos no programa de A e de configuração espacial exigida de B pode ser aplicada a A." (TSCHUMI, 1996: 205) (10)

Em todas estas definições o que encontramos é uma predisposição à complexidade e ao indeterminado, possivelmente dos termos mais caros à contemporaneidade.


Corpos e Construções

O que temos aqui descrito, portanto, leva-nos à constatação de que o movimento dos corpos no espaço como fundamento primeiro de sua concepção pode originar novas condições urbanas, possivelmente mais próximas das incursões sociais contemporâneas: o valor do corpo físico instaurado como meio de percepção e vivência da realidade. Acima de tudo, um corpo vívido, potente e capaz de acolher ou suplantar um universo de possibilidades. Universo este que emerge da instabilidade e da imprevisibilidade originadas nas relações com aquilo que lhe é exterior – o outro. Uma arquitetura da inquietude, a partir da qual, aqueles que a experimentam se tornam parte imprescindível da criação de ilusões e surpresas, características imprescindíveis para a construção de uma memória.

"Espaços de movimento – corredores, escadas, rampas, passagens, soleiras; é aí que começa a articulação entre o espaço dos sentidos e o espaço da sociedade, as danças e os gestos que combinam a representação do espaço e o espaço da representação. Os corpos não somente se movem para o seu interior, mas produzem espaços por meio e através de seus movimentos. Movimentos são a intromissão de eventos nos espaços arquitetônicos. No limite, esses eventos se transformam em cenários ou programas, esvaziados de implicações morais ou funcionais, independentes porem inseparáveis dos espaços que os encerram." (TSCHUMI apud NESBITT, 2006: 181)

Assim, poderíamos pensar nossas cidades como espaços de movimento por definição: ruas e praças como grandes corredores humanos e sociais. Na cidade, nos encontramos, talvez, dentro de uma grande obra de arquitetura, na qual o acúmulo e a colisão de multidões ou de indivíduos solitários, sejam dos principais acontecimentos para sua significação, um lugar onde a construção do imaterial passa a ser o mais importante. A construção de sentido por meio da ativação do próprio ser e não do que seja exterior a ele. Como aponta Tschumi:

"O interesse da arquitetura não se deve aos seus fragmentos, ou ao que representam ou não representam. Tampouco consiste em exteriorizar, por meio de uma forma qualquer, os desejos inconscientes da sociedade ou de seus arquitetos. E também não é mera representação desses desejos por intermédio de alguma imagem arquitetônica fantástica. Na verdade, só pode agir como um recipiente em que seus desejos, meus desejos, podem ser refletidos. Assim, uma obra de arquitetura não é arquitetura porque seduz, ou porque preenche dada função utilitária, mas porque põe em ação as operações da sedução e o inconsciente." (TSCHUMI apud NESBITT, 2006: 583)

Portanto, o que poderíamos descrever observando nosso meio urbano atual é que a multiplicidade de tempos e acontecimentos vividos trazem consigo, acima de tudo, a expectativa de outros venham a se suceder e continuar alimentando nossa vivência frágil dos mundos aos quais nossos corpos e consciências se encontram hoje sujeitas.



Notas:

(1) Tradução livre do autor. Versão original: “Would we ever wish it to do so, our society could not get out of its space. Even though it produces space, society is always its prisoner. Because space is the common framework for all activities, it is often used politically in order to give an appearance of coherence through the concealment of its social contradictions.”
(2) Tradução livre do autor. Versão original: “Cities have become deregulated. This deregulation is reinforced by the fact that much of the city does not belong to the realm of the visible anymore. What was once called urban design has been replaced by a composite of invisible systems. Why should architects still talk about monuments? Monuments are invisible now.
(3) Tradução livre do autor. Versão original: “The place of the “in-between”, the space of all potentialities, is activated by the motion of bodies in it.”
(4) Tradução livre do autor. Versão original: “Indifference, whereby the idea and its siting are superbly ignorant of one another – a kind of accidental collage in which both coexist but do not interact. Poetic juxtapositions or irresponsible impositions may result. Reciprocity, whereby the architectural concept and its context interact closely with one another, in a complementary way, so that they seem to merge seamlessly into a single continuous entity. Conflict, whereby the architectural concept is strategically mad to clash with its context, in a battle of opposites in which both protagonists may need to negotiate their own survival.”
(5) Tradução livre do autor. Versão original: “Architecture is much about the events that occur in the spaces as the spaces themselves.”
(6) Tradução livre do autor. Versão original: “The definition of architecture as simultaneously space and event brings us back to political concerns, or more precisely, to the question of space as related to social practice. If architecture is neither pure form nor solely determined by socioeconomic or functional constraints, the search for its definition must always expand to an urban dimension. The complex social, economic, and political mechanisms that govern the expansion and contraction of the contemporary city are not without effect on architecture and its societal use. Space always marks the territory, the milieu of social practice.”
(7) Tradução livre do autor. Versão original: "'Program' is to be distinguished from 'event'. A program is a determinate set of expected occurrences, a list of required utilities, often based on social behavior, habit, or custom. In contrast, events occur as an indeterminate set o unexpected outcomes. Revealing hidden potentialities or contradictions in a program, and relating them to a particularly appropriate (or possibly exceptional) spatial configuration, may create conditions for unexpected events to occur. For example, one may combine or assemble programmed activities so that they charge a spatial configuration in such a way that, by mixing otherwise common or predictable programmatic items, they generate uncommon or unpredictable events. I have often called that particular spatial configuration the 'in-between'."
(8) Tradução livre do autor. Versão original: "When I say Degree Zero I mean something which is not loaded with meaning, which is not loaded with formal and aesthetic preferences. It is not culturally motivated. It is an attempt to reduce things simply to the locus of activities."
(9) Tradução livre do autor. Versão original: "Architecture is not about the conditions of design but about the design of conditions that will dislocate the most traditional and regressive aspects of our society and simultaneously reorganize these elements in the most liberating way, so that our experience becomes the experience of events organized and strategized through architecture. Strategy is a key word in architecture today. No more masterplans, no more locating in a fixed place, but a new heterotopia. This is what our cities must strive toward and what we architects must help them to achieve by intensifying the rich collision of events and spaces."
(10) Tradução livre do autor. Versão original: "Crossprogramming: using a given spatial configuration for a program not intended for it, that is, using a church building for bowling. Similar to typological displacement: a town hall inside the spatial configuration of a prison or a museum inside a car park structure. Reference: crossdressing. / Transprogramming: combining two programs, regardless of their incompatibilities, together with their respective spatial configurations. Reference: planetarium + rollercoaster. / Disprogramming: Combining two programs, whereby a required spatial configuration of program A contaminates program B and B’s possible configuration. The new program B may be extracted from the inherent contradictions contained in program A, and B’s required spatial configuration may be applied to A."


Bibliografia:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1992.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: 34, 1999.
NESBITT, Kate (org.). Uma nova agenda para arquitetura: antologia teórica 1965-1995. Trad. Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
TSCHUMI, Bernard. Architecture and Disjunction. MIT Press. Cambridge, 1996.
________________. Event-Cities 2. MIT Press. Cambridge, 2000.
________________. Event-Cities 3. MIT Press. Cambridge, 2004.
GA Document Extra 10 – Bernard Tschumi. ADA Edita: Tóquio, 1997


Título: Entre mundos urbanos
Autor: Daniel Corsi
Ano: 2014

Texto escrito originalmente para o Grupo de Pesquisa “Territórios e Temporalidades” da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie, coordenado pelo Prof. Dr. Igor Guatelli e integrado pelos professores Profa. Dra. Lizete Maria Rubano, Prof. Dr. Luis Guilherme Rivera de Castro, Prof. Ms. Daniel Corsi da Silva, Prof. Ms. Celso Sampaio e os alunos Giulia Zanganatto, Larissa Urbano de Oliveira, Renata Ferreira Mariano Costa, Kamila de Oliveira Souza, Caique Cortina Tognato Cunha, Carolina Corte Real Bastos, Caroline Anseloni, Mellize Freua Paganotti, Thomas Takeuchi. Filme: Studio Franklin Nolla. Financiamento: MackPesquisa.

Como citar:
CORSI, Daniel. Entre mundos urbanos. Atelier Daniel Corsi, São Paulo, 2014
<http://www.danielcorsi.com/ensaio/entre-mundos-urbanos>


(Textos e imagens de usos e fins exclusivamente acadêmicos)


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