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Reconhecer Para Reagir: Sobre os Pulsos de São Paulo

Daniel Corsi


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As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa. (CALVINO, 1990, p.44)

Vivemos em tempos em que a liberdade é valor raro. Tempos em que, inclusive, qualquer noção pura dela mesma é frequentemente surpreendida pelo martelo dos poderes extremos que conduzem nossas leis – e tudo mais que existe fora delas. Talvez, como nunca antes, nosso Estado democrático, ameaçado por agentes cujos olhos ambiciosos nos escancaram sua nocividade social, evidencie uma fragilidade e uma vulnerabilidade que devem ser veementemente combatidas.

É preciso observar.

Vivemos em tempos em que nossa liberdade de expressão, nossa liberdade de pensar e nossa liberdade de sentir se encontram em risco. Entre tantas, uma outra liberdade que se mostra intimidada é a de nos conhecermos. Num país que fracassou na construção de uma mínima consciência sobre sua história e é palco de cotidiano no qual seus patrimônios – e, por que não, suas próprias memórias – são banalmente incendiados, como saber quem somos?

É preciso agir.

Vivemos na iminência de uma completa falta de sentido e, como constatamos diariamente, sobretudo do sentido democrático. As cidades, suportes da vida humana e social, podendo ser reconhecidas como os verdadeiros palcos dessa preciosa democracia, encontram-se, já há muito tempo, igualmente em risco. São elas que, juntamente com seus habitantes, explicitam os rastros de todos os seus tempos acumulados.

É preciso propor.

Assim, dedicarmo-nos às cidades implica valorizá-las, enaltecê-las como nossos lugares – ou como as únicas oportunidades possíveis de convivermos melhor. Para isso, e diante da afronta sistemática aos seus fundamentos democráticos, é preciso reconquistá-las – diariamente – como nosso bem comum.

É preciso reconhecer.

Como poucas, a magnitude de São Paulo nos assombra. As complexidades de suas camadas, de seus tecidos, de suas marcas, de seus habitantes, revelam-se como labirintos sem fim para aqueles que, de algum modo, pretendem desvendá-la. Como um gigante em constante transmutação, vai ocultando dentro de si pulsos e repulsos em meio aos quais vagamos solitária ou solidariamente. Imersos em sua potência, com maior ou menor lucidez, buscamos nos situar em relação ao que nos envolve, aos outros que nos acompanham e a nós mesmos. Somos parte desta cidade e, ao fim, somos todos integrantes dessa imanência pronta para ser profundamente reconhecida.

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Olhar um objeto é mergulhar nele. Os objetos circundantes tornam-se horizonte, a visão é um ato de dois lados. Ou seja: ver um objeto é ir habitá-lo e daí observar todas as coisas. Mas, como também nelas estou virtualmente situado, tomo de diferentes ângulos o objeto principal de minha observação. O olhar se faz nas duas direções, cada objeto é espelho de todos os demais. (PEIXOTO, 2004, p.177)

A edição do segundo semestre de 2017 do Estúdio Vertical proposta pela Escola da Cidade se pautou precisamente pela valorização dessas liberdades – de observar, agir, propor e reconhecer –, mais do que nunca necessárias para reconquistarmos uma compreensão ampla dessa que é a nossa urbe. Como uma porta aberta, o que se vivenciou foi um compartilhamento franco de processos de desenvolvimento e de resultados. Distante da recorrente ansiedade dos frutos imediatos, configurou-se uma reunião plural de interesses, curiosidades, dúvidas e desejos conscientes da oportunidade de inaugurar novos caminhos de entendimento de nossa cidade, mais do que conclusões.

A intensidade de São Paulo não poderia ser abraçada senão por um trabalho coletivo e panorâmico: uma grande leitura sensível concretizada por alunos e professores em trabalhos de uma variedade ímpar e que pode ser compreendida somente se reconhecermos a mesma variedade que define a própria cidade. Olhares aguçados que, a partir de observações precisas e cautelosas, puderam trazer à luz as características, as fragilidades e as potencialidades presentes no meio que nos envolve.

Por mais que reconheçamos quase sempre em nossas construções e edifícios a matéria da cidade, as abordagens desses trabalhos deixaram claro o quanto tudo aquilo que acontece para além dessa mesma matéria é onde grande parte da cidade acontece. Tão importante quanto sua condição física são os eventos, as apropriações e os acontecimentos promovidos pelas pessoas que a habitam. Suas ruas, seus vazios, seus espaços de transição são os lugares onde podemos reconhecer uma autêntica vida urbana, democrática e espontânea.

E se falamos de espaço, o tempo cumpre seu papel equivalente. Numa cidade como a nossa, impossível ignorar o valor dessa dimensão ou mesmo sua relação intrínseca com qualquer leitura espacial. São Paulo é um retrato de nossa condição contemporânea na qual a simultaneidade de seus acontecimentos nos põe diante de um sem-fim de tempos e espaços.

Trabalhos como os que se dedicam à compreensão de lugares aparentemente despretensiosos de nosso cotidiano, como um ponto de ônibus, ou de situações ocultas, como os vazios da Avenida Paulista, mostram-se sensíveis às nuances que, com frequência, passam despercebidas pelo habitante comum. Como se não houvesse limites, as “incursões urbanas” desses trabalhos também nos levam às sombras periféricas da cidade – seja em Perus, seja nas praias de Guarapiranga –, assim como às suas entranhas mais remotas, como o Estadão Bar e Lanches. Tudo é motivo para buscarmos formas como a cidade se evidencia para nós, dentro de suas complexidades e singularidades.

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A imaginação romântica que sobrevive em nossa sensibilidade contemporânea se nutre de memórias e de expectativas. Estrangeiros em nossa própria pátria, estranhos em nossa cidade, o habitante da metrópole sente os espaços não dominados pela arquitetura como um reflexo de sua própria insegurança, de seu vago deambular por espaços sem limites que, em sua posição fora do sistema urbano, de poder, de atividade, constituem uma expressão física de seu temor e insegurança e, ao mesmo tempo, uma expectativa do outro, do alternativo, do utópico, do porvir. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.188)

O que sentimos pela cidade? O que sentimos na cidade? Como a cidade nos provoca? Como a cidade nos afeta? Os trabalhos aqui apresentados são reivindicações de um diálogo no qual, de um lado, a cidade se evidencia e, de outro, nós a afetamos e a provocamos mutuamente. São reivindicações de um pensar que é fazer, conscientes de que, nessas reflexões, nessas descobertas e nessas manifestações, reside o valor imensurável de nos enxergarmos sempre como incansáveis pesquisadores (urbanos).

Como suplantar a cidade de muros visíveis e invisíveis? Como fazer com que prevaleça a dimensão pública das convivências que tanto desejamos ver acontecer? É preciso conhecer e, em muitos casos, reconhecer. A busca pelo direito de uma cidade democrática deve ser infindável – e incansável. O que temos em mãos é de enorme contribuição para uma São Paulo que já pulsa e pode pulsar ainda mais.


Referências Bibliográficas:

CALVINO, I. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
PEIXOTO, N. B. Paisagens Urbanas. São Paulo: Senac, 2004
SOLÁ-MORALES. I. Territorios. Barcelona: Gustavo Gili, 2002


Título:
Reconhecer Para Reagir: Sobre os Pulsos de São Paulo
Autor: Daniel Corsi
Ano: 2018

Texto escrito originalmente para o Catálogo do Estúdio Vertical: Reconhecer São Paulo (edição do segundo semestre de 2017) | Escola da Cidade, coordenado pelos professores Cesar Shundi e Francisco Fanucci. Para saber mais sobre essa edição visite: <https://ev.escoladacidade.org/project-type/2017-reconhecer-sao-paulo>

Legendas Imagens:
1 (Capa Catálogo 2017)

Créditos Imagens:
1 (Escola da Cidade)

Como citar:
CORSI, Daniel. Reconhecer Para Reagir: Sobre os Pulsos de São Paulo. Atelier Daniel Corsi, São Paulo, 2018.
<http://www.danielcorsi.com/ensaio/reconhecer-para-reagir-sobre-os-pulsos-de-sao-paulo>

(Textos e imagens de usos e fins exclusivamente acadêmicos)


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