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Amanhã (de)Novo / Tomorrow Anew

 

Amanhã (de)Novo[i]

Tomorrow Anew

 

Alto, parem comigo.

Pensemos por um instante para onde vamos e como. Admitamos que o que estamos vivendo hoje nos acua no limiar de uma crença otimista de tudo podermos mudar e de um pessimismo petrificado de tudo se manter terrivelmente igual. Em meio ao dilema, os grandes poderes que nos conduzem conflitam de modo selvagem e nós, meros humanos, seguimos à deriva e reféns de nossa própria civilização, mas diante de uma nova chance.

Lá se vão vinte anos transcorridos em nosso Século XXI, um breve intervalo de tempo que continua nos fazendo presenciar crises cada vez maiores. Lembremos que nós o vimos chegar com o drama do terror de torres sendo levadas ao chão e, anos depois, com o incompreensível fluxo do dinheiro colapsando os nocivos sistemas bancários e financeiros. Em sua segunda década, guerras injustificáveis contribuíram, mais uma vez, para a mutilação de nossas irmãs e irmãos, além de nos levarem a subsequentes migrações inéditas de milhões de seres humanos abandonados, até hoje, a seu próprio destino. Para além disso, desastres ambientais – muitos deles aliás propulsados pela ação humana – revelaram a ferocidade de uma natureza incomodada com seus habitantes. Eis que então, infelizmente, vemos agora uma nova crise unir o planeta sob os efeitos do poder invisível de um vírus ínfimo e capaz de neutralizar sãos e enfermos de maneira assombrosa.

Olhemos de frente, encaremos algo que decididamente não é bom, algo doente e do qual todos nós fazemos parte. Nossa falência é política, social, econômica, ambiental e, agora, biológica, cada uma delas carregando seus efeitos éticos e morais sobre o ser humano e, podemos dizer, custando muitas vidas.

De que História estamos participando? Onde nos encontramos como Humanidade nesse momento, 2020? Já imaginaram que os ‘filhos do amanhã’, gerações nascidas nesse Século, podem não saber sequer o que significa despertar num sentimento distinto ao temor? E então, nos perguntamos todos, o que será diferente amanhã?

Porém, antes dessa pergunta, façamo-nos outra igualmente inevitável: o que foi diferente ontem? Evidente que à mente vêm as tantas maravilhas humanas, os pensamentos, as ciências, as artes, as descobertas e as invenções, permeadas pela delicadeza da poesia que também nos distingue. Mas o retrato não se revela assim em sua plenitude e, rapidamente, somos paralisados pela lembrança das consequências dos mesmos males, crises e brutalidades intermitentes que ainda nos empurram para algum lugar desconhecido do tempo.

Onde estávamos e o que sentíamos em 1920, 1820, 1720...? Ainda que entre o conflito e a paz, desde Homero tentamos compreender a noção básica de comunidade. Como pode então valor tão fundamental se manter uma ficção? Será tão inviável assim? A memória ajuda e me faz relembrar um otimista possível.

Em 1759, Voltaire trazia à luz o seu Cândido, um ser comum, injustificavelmente dilacerado por todos os males possíveis do mundo de então e que difeririam dos de hoje apenas pelas proporções e nomes: a guerra dos sete anos, a inquisição, o terremoto de Lisboa, a escravidão colonial, entre outros. Cândido passa renitente por tudo isso, mas ainda assim apaziguado por uma filosofia que lhe havia feito aceitar que tudo estaria bem e que o mundo se fazia assim mesmo, bastando-lhe suportá-lo. Mas desse ‘otimismo ingênuo’ irrompe um inconformismo feroz que faz Cândido gritar que não, não poderia estar tudo bem. É assim que num dado momento se pergunta se os homens “sempre foram mentirosos, espertos, pérfidos, ingratos, ladrões, fracos, volúveis, covardes, ciumentos, comilões, beberrões, avarentos, ambiciosos, sanguinários, caluniadores, depravados, fanáticos, hipócritas e estúpidos." [ii], e que algo deveria lhe diferenciar da condição de outros seres: “há uma diferença, pois o livre-arbítrio...” [iii]

É assim que, de modo elementar, Cândido transita para o que poderíamos chamar de um ‘otimismo maduro’. É com ele e pelas consequências de suas próprias decisões, que é levado a ter seus sofrimentos redimidos por um final de vida intimamente pacífico. Tudo isso não por acaso, mas deliberadamente eleito por si mesmo, distante de qualquer ambição ou vaidade, consciente de seu lugar no mundo e da necessidade fundamental que coloca para si e para os seus sobre o quanto é preciso zelarmos por nós mesmos e por aquilo que existe ao nosso redor. Cândido conclui que, mesmo diante de todos os males, “é preciso cultivar nosso jardim.” [iv]

Alvíssaras se o jardim de Cândido fosse o mundo e Cândido a humanidade!

Clama aqui a consciência de que os injustificáveis males morais e físicos resultam também de nós. A entrega final ao seu pequeno jardim é simbólica, é generosa, é a sua parcela de responsabilidade sobre o mundo que busca então cuidar, sem a pretensão de conquistas poderosas, mas da consumação de sua simples parte. Ainda que a filosofia possa tê-lo revisado, é esse o dito redentor e mais sensível dessa história.

Esse jardim é nosso e é preciso cuidá-lo com sensibilidade, com a delicadeza que José Saramago contava cuidar do seu próprio em Lanzarote. O mesmo Saramago que, preocupado com o amanhã, disse certa vez: “vamos cada vez mais a sentir-nos perdidos, perdidos em primeiro lugar de nós próprios e em segundo lugar perdidos na relação com o mundo. Acabamos por circular por aí sem saber o que somos, nem para que servimos, nem que sentido tem a existência.” [v]

Como nos mantermos inertes frente à tal indagação. estáticos diante do perigo de uma anulação dos sentidos e de um futuro oco, perfurado pelo punhal enferrujado da miséria humana? Espantosamente, parece que ainda não assimilamos nem o jardim, nem a possibilidade de sua extinção.

Não! Não é mais possível adiar a Humanidade! Não pode ser que ela tenha que residir no universo do imponderável. Há transformações a serem reivindicadas, decisões a serem tomadas, revoluções a serem vividas, mudanças a serem conquistadas. Então o que pode ser diferente hoje?

Estejamos atentos às respostas que já pairam no ar espesso desse mesmo Século XXI. Deixemos ecoar em nossos ouvidos as suas potentes vozes, entre elas as dessas três meninas que, clamando pelo amanhã, arrebatam-nos no presente. Escutemos as vozes que emergem, pois estão nos observando (e cobrando) com o seu desespero e esperança.

Em 2013, nos confins do mundo, Valter Hugo Mãe nos coloca diante dos gritos silenciosos da menina Halla que, com seus aproximados doze anos, evidencia-nos que nada pode permanecer igual, nada: “Diziam os velhos carregados de ideias inúteis. Os profundos velhos. Gastos da coragem, aumentados da desconfiança. (...) Como se o futuro estivesse preparado para ser igual ao passado, aos dias que gastaram. Como se eu ainda fosse a tempo de lhes ser igual.” [vi]

Em 2014, a paquistanesa Malala Yousafzai, com dezessete anos, convoca a todos com suas palavras: “Queridas irmãs e irmãos, queridas crianças, devemos trabalhar, não esperar. Não apenas os políticos e os líderes mundiais, todos precisamos contribuir. Eu. Vocês. Nós. É nosso dever. (…) Vamos nos tornar a primeira geração que decide ser a última a ver salas de aula vazias, infâncias perdidas e potenciais desperdiçados. (...) Vamos começar a encerrar isso juntos, hoje, aqui e agora." [vii]

Em 2019, a sueca Greta Thunberg, com dezesseis anos, vocifera diante de nossos supostos líderes globais: "Vocês dizem que amam seus filhos acima de tudo, e ainda assim estão roubando o futuro deles diante de seus próprios olhos. Como ousam? (...) Eu quero que entrem em pânico, que sintam o medo que sinto todos os dias. E então eu quero que vocês ajam. (...) Não podemos continuar vivendo como se não houvesse amanhã, porque há um amanhã. É tudo o que estamos dizendo." [viii]

Assim, entre o efeito pendular da ordem e da desordem que nos acompanha, e diante das vozes que nos conclamam, é imperativo que tomemos consciência de que é no presente que tudo existe e que é nele que precisamos agir. É imperativo que se detenha qualquer tipo de mal que assola nossa irmandade. É imperativa nossa atitude combativa para com tudo aquilo que nos destrói. É imperativo que valorizemos algo mais do que o poder. Além disso, é imperativo que a vida humana não seja diminuída ao consumo e ao dinheiro. Por que ter tanto? Por que o acúmulo desmedido frente à escassez do essencial ao próximo? É imperativo o respeito às diversidades, sejam elas de raça, gênero, crença, cultura ou de qualquer outro direito fundamental de quem existe. Qualquer desigualdade é inadmissível. Não há meritocracia que justifique tamanha violência. Ela é desumana, ignorante, estúpida e má.

Saibamos que são vários os mundos que compõe o nosso mundo e é dessa riqueza que nasce sua potência, sua beleza. É imperativo exercermos uma ética que ampara o outro com afeto e paz: “O inferno não são os outros. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. (...) Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes.” [ix]

Hoje, é possível a ideia de pensarmos no mundo unido por um mesmo sentido: a sobrevivência. Não estamos sós e não precisamos fazê-lo assim. A jovem Halla relembra de seus velhos: “Quem tem filhos, precisa do futuro. Ouvi-os falar assim.” [x]

Hoje, Heitor e Julio – meus dois filhos – tem somente um ano e precisam de um mundo que deverá perdurar em suas mãos. Muitos outros filhos precisam, eu preciso, todos nós precisamos. Pensemos que somos todos ao mesmo tempo pais e filhos dessa humanidade, da qual colhemos e onde devemos semear.

Por favor, um pouco de sensibilidade para com o outro. Um pouco de razão pois, por enquanto, o tempo ainda é nosso. Simplesmente olhem para o mundo, ele ainda está aí, nascendo e morrendo continuamente, mas ainda vivo, pulsante. É preciso apreço e paixão humana pela oportunidade da vida. É preciso exercermos nossa liberdade e, com ela, construirmos algum sentido onde originalmente não há.

Por fim, talvez sejamos isso mesmo: uma humanidade que patina em suas fragilidades e absurdos, mas que segue tentando compreender a sua existência. Já nos enxergamos como seres naturalmente bons. Já nos enxergamos como seres naturalmente maus. Se for assim, fico com a liberdade de sermos aquilo que escolhermos ser. Se for assim fico com a dimensão sensível do ser humano, sua delicadeza, sua solidariedade, seu altruísmo, seu amor. Deixo aqui então o gesto do qual, talvez, a humanidade quase sempre careça: com a força de sete bilhões, o meu abraço.

Pronto, sigamos agora a marcha que é nossa.

 

[i] Texto escrito originalmente para a campanha de ajuda humanitária Amanhã (de)Novo/Tomorrow Anew (https://tomorrowanew.org/), uma resposta à atual crise desencadeada pelo Covid-19. A campanha colabora com ONGs que estão atuando ativamente nos EUA, Quênia, Brasil e em diversos outros países do mundo que estão sofrendo as piores consequências da crise. Criada por Gabriel Kozlowski (MIT), Luisa Schettino (MIT), Refik Anadol (UCLA), Helena Wajnman (MIT), Max Ghenis (MIT), Maria Kozlowski (XDivers), Leticia Schettino (Harvard), Monica Vieira Eisenberg (Brazil Global Partner/Drummond Advisors), Ariel Kozlowski (Inst. Ambiente em Movimento), NESS Magazine.

[ii]  VOLTAIRE. Cândido ou o Otimismo. Trad. S. Titan Jr. São Paulo: Editora 34, 2016. Pag. 127.

[iii] Idem. Pag. 127.

[iv] Idem. Pag. 185.

[v] JANELA da Alma. Direção: João Jardim, Walter Carvalho. Rio de Janeiro: Tambellini Filmes, 2001.

[vi] MÃE, Valter Hugo. A desumanização. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. Pag. 15.

[vii] YOUSAFZAI, Malala. Nobel Lecture. Oslo: The Nobel Prize, 2014.

[viii] ALTER, C.; HAYNES S.; WORLAND, J. Time 2019 Person of The Year: Greta Thunberg. Time Magazine, Nova Iorque, 23-30, Dez. 2019.

[ix] MÃE, Valter Hugo. A desumanização. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. Pag. 15.

[x] Idem. Pag. 16.

Título: Amanhã (de)Novo
Autor: Daniel Corsi
Ano: 2021

Texto escrito originalmente para a campanha de ajuda humanitária Amanhã (de)Novo/Tomorrow Anew, criada em resposta à atual crise desencadeada pelo Covid-19. A campanha colabora com ONGs que estão atuando ativamente nos EUA, Quênia, Brasil e em diversos outros países do mundo que estão sofrendo as piores consequências da crise. Criada por Gabriel Kozlowski (MIT), Luisa Schettino (MIT), Refik Anadol (UCLA), Helena Wajnman (MIT), Max Ghenis (MIT), Maria Kozlowski (XDivers), Leticia Schettino (Harvard), Monica Vieira Eisenberg (Brazil Global Partner/Drummond Advisors), Ariel Kozlowski (Inst. Ambiente em Movimento), NESS Magazine. Para mais informações visite:

Como citar:
CORSI, Daniel. Amanhã (de)Novo. Atelier Daniel Corsi, São Paulo, 2021.

(Textos e imagens de usos e fins exclusivamente acadêmicos)


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