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Atos Tridimensionais: Manifestações da Existência. Interfaces entre a Arquitetura e a Escultura

Daniel Corsi

(Dissertação apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo para obtenção do Título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo Área de concentração | Design e Arquitetura Orientador | Prof. Dr. Carlos Egídio Alonso São Paulo | 2012)


Resumo

Esta dissertação se propõe a analisar possíveis interfaces entre a Arquitetura e a Escultura, abordando suas produções realizadas a partir da segunda metade do Século XX, período que se caracterizou pelo rompimento de inúmeros paradigmas teóricos e conceituais. Considerando essas manifestações a partir de suas naturezas tridimensionais, busca-se, segundo um enfoque transdisciplinar, apurar significados e novos parâmetros de análise compartilhados por ambas expressões, num processo recíproco de influências conceituais e práticas. A pesquisa divide-se em duas partes. Na primeira delas – Conceitos Tridimensionais – são estudados os fatos históricos e os conceitos filosóficos que influenciaram as concepções teóricas das produções da arquitetura e da escultura deste período. Nesta parte também são estudadas algumas transformações específicas dos universos destas manifestações, consideradas determinantes para a constituição das obras posteriormente destacadas. Na segunda parte – Processos Tridimensionais – é realizada a leitura de algumas obras arquitetônicas e escultóricas fundamentadas sobre novas organizações produtivas estabelecidas no período estudado. Partindo do repertório transdisciplinar apresentado na primeira parte sobre os conceitos criativos de ambas as manifestações, são definidos parâmetros de análise que abrangem temas fundamentais das interfaces mencionadas. Os conceitos de Paisagem, Tempo, Estrutura, Matéria e Forma são estendidos em definições que conduzem a leitura de cada uma das obras selecionadas. Com isso, são estabelecidos novos conceitos cognitivos destas construções demonstrando como se influenciam mutuamente, compartilhando ou não suas intenções. Também é revelado o potencial advindo da proximidade destas duas manifestações, oferecendo referenciais teóricos e práticos para que possam ser explorados em futuras produções. Sintetizando os procedimentos específicos destes atos tridimensionais e os conceitos filosóficos de leitura, busca-se demonstrar, a partir da densidade das obras escolhidas, atos singulares da existência humana.


Introdução

“Nossa vida é de natureza microscópica,
é um ponto indivisível que,
sob as poderosas lentes do Tempo e do Espaço,
torna-se consideravelmente engrandecida.”
(SCHOPENHAUER, 2005: 64) (i)

De tudo, resta-nos a certeza diante do mistério de nossa própria existência; uma consciência sobre a inexplicabilidade do mundo que, talvez, permita reconhecermo-nos em nossa suma condição humana.

Diante de tal circunstância e do reconhecimento de nossa inevitável finitude, somos arrebatados por outro mistério: o da criação humana. Surge, então, uma incoercível necessidade de manifestarmo-nos, envoltos numa incansável e inexplicável ‘expansão vital’, tão intensa como aquela presenciada nas forças naturais.

Prontamente, fazemos da realidade a matéria de nossa permanência – representada por atos modestos ou grandiosos, transitórios ou perduráveis, silenciosos ou solenes –, responsável pela origem de monumentos que, frente à sua magnitude, são capazes de nos emocionar.

Nos segredos das distâncias do cosmos e nas proximidades de nosso próprio universo humano, buscamos um sentido maior e, registrando nossas sublimes impressões a respeito da escuridão da qual eternamente padeceremos, construímos a memória da humanidade.

É a busca pela compreensão desse sentimento que provoca a força de atos heroicos diante da realidade e esse fascínio frente ao desconhecido que originam o presente estudo, cujo olhar recai sobre obras capazes de fazer com que sigamos transformando nossa condição humana ou, em outras palavras, manifestando nossa existência.

A Arquitetura e a Escultura, definidas como atos tridimensionais, evidenciam-se como manifestações singulares para uma análise que procura revelar possíveis interfaces existentes nas relações entre o ser humano e a condição que o envolve, uma vez que estes atos carregam em si a vontade por representações espaço-temporais. A observação destas formas de expressão pode nos indicar os estreitos vínculos conceptivos que compartilham entre si, bem como a amplitude de suas ações percebidas num momento em que não se restringem às intenções do próprio indivíduo que as criam, mas refletem a expansão de uma dimensão coletiva, que influencia diretamente a paisagem na qual estão inseridas e todos que as vivenciam.

Os objetivos da pesquisa residiram em apurar os significados do pensamento destas manifestações mediante a abordagem de algumas condições históricas da segunda metade do século XX, estabelecidas no período pós-guerra, cujas consequências se prolongaram pelas décadas seguintes, estendendo-se até a contemporaneidade. Caracterizadas por um contexto de intensa revolução social, política, econômica e cultural, as relações entre estes ofícios criativos tornaram-se cada vez mais próximas por meio da revisão das ideologias e concepções modernas que, então, deram origem a uma nova condição definida por sucessivos pensamentos e movimentos, conhecida como pós-moderna. A Arquitetura e a Escultura compartilharam interpretações a respeito de elementos como espaço, tempo, matéria, forma e significado, tendo sido influenciadas pelas teorias filosóficas, levando-as a se posicionarem a respeito da existência humana e das consequências dos fatos históricos presenciados em seus respectivos momentos.

Frente à necessidade de se construir uma compreensão mais aprofundada dos paradigmas pertinentes a essa temática e tendo nas linguagens tridimensionais seus principais campos de desenvolvimento, mostrou-se fundamental estabelecer um processo transdisciplinar de estudo. Para isso, desdobraram-se questões encontradas nos campos da Filosofia, da Estética e da Semiótica, constituindo um olhar que possibilitou a busca de um sentido anterior dessas manifestações, referente aos seus princípios fundadores. Partiu-se, assim, das indagações da filosofia sobre os fundamentos da existência, em que a necessidade da expressão da essência humana por meio da criação se percebe primordial e conduz à indagação sobre o processo criativo e sobre as intenções que embasam e originam tais atos.

A Arquitetura e a Escultura, por sua natureza espacial, levam este questionamento a um grau distinto, tendo em vista que o indivíduo criador tem em seu contexto envolvente uma fonte inesgotável de razões para suas ações - e suas respectivas consequências, sejam elas criativas ou não. Além disso, estas manifestações lidam com a materialidade física de um modo particular, uma vez que a transformação do existente pode tornar-se reveladora de diversas naturezas.

Tais fatores proporcionaram mudanças substanciais nos períodos abordados pela pesquisa, mostrando-se necessário o estudo desses processos criativos e daquilo que neles pode ser apontado como parâmetros fundamentais que possibilitaram a abertura de novos entendimentos. O questionamento sobre a produção arquitetônica e escultórica a partir de conceitos filosóficos confere a estas manifestações noções análogas que podem levá-las a diferentes apontamentos teóricos e práticos: as interfaces dessas compreensões, ora transitando da arquitetura para a escultura, ora da escultura para a arquitetura, é um instrumento de grande potencial para novas estratégias projetuais e investigativas. Espera-se, assim, que a reflexão teórica e histórica aqui desenvolvida possa servir como uma base referencial para posteriores leituras das produções contemporâneas que têm em sua origem concepções ou derivações das fundamentações teóricas analisadas neste trabalho.

O estudo foi desenvolvido em duas partes. Seguindo sua proposta transdisciplinar, com o objetivo de levantar paradigmas de análise das obras arquitetônicas e escultóricas, sem pretender esgotar os temas abordados, a primeira parte, denominada Conceitos Tridimensionais, dedicou-se a analisar os fatos históricos, os conceitos filosóficos e estéticos que se configuraram como bases conceituais das produções estudadas e que, junto às próprias teorias da Arquitetura e da Arte, também analisadas, apontaram os princípios criativos determinantes de suas naturezas, de suas intenções e das diversas sintaxes impregnadas em suas linguagens.

O primeiro capítulo, O Contexto da Era de Ouro, destinou-se à fundamentação e à definição dos critérios temporais para o desenvolvimento da pesquisa, a partir de uma abordagem histórica e reflexiva da contextualização cultural, política, social e econômica. O capítulo inicia-se pela leitura dos fenômenos da primeira metade do século XX e o modo como nela se presenciou a configuração dos ideais modernos, passando-se ao contexto da segunda metade do século, chamada de “Era de Ouro” pelo historiador Eric Hobsbawm. Esta parte aborda as transformações decorrentes da consolidação do capitalismo de consumo, das revoluções sociais e culturais, e do próprio esgotamento das condições impostas por esses fatos. São também analisados os rompimentos de paradigmas teóricos e conceituais da Modernidade pela Pós-Modernidade, entre o quais se destacam as noções de Tempo e Espaço.

O segundo capítulo, Condições Criativas, pretendeu apresentar os elementos fundamentais para a abordagem posterior das obras arquitetônicas e escultóricas eleitas como objetos desse estudo. Nele, são analisadas referências da Filosofia e da Estética para a constituição de um embasamento teórico e científico que busca ir além das disciplinas da Arquitetura e da Arte. Tendo em vista que as referidas manifestações tridimensionais compartilham de um mesmo fazer artístico e criativo, este capítulo aborda, a partir de uma bibliografia introdutória sobre a Filosofia do século XX, as fundamentações contemporâneas a respeito da condição existencial humana e os atos expressivos dela decorrentes. Nesse sentido, são apresentadas as definições sobre as origens atemporais do processo criativo, os fundamentos conceituais dos objetos humanos e sua direta relação com os fazeres arquitetônicos e artísticos, além de se estabelecer uma reflexão sobre a condição contemporânea caracterizada pela transição das concepções Modernas às Pós-Modernas, na qual as obras estudadas se inserem.

O capítulo Atos Tridimensionais, destinado a analisar as produções da Arquitetura e da Escultura do período abordado pela pesquisa, tem em sua estrutura movimentos, arquitetos, artistas, escultores e obras escolhidas em função do significado de sua representação para a problemática e hipóteses levantadas neste estudo. O conteúdo arquitetônico concentra-se no desenvolvimento e na configuração de duas concepções do Movimento Moderno: uma que reafirma o racionalismo em seus ideais fundamentais, elevando-os à sua expressão extrema e outra que estabelece, ao longo do tempo, uma revisão substancial de seus princípios, trazendo à luz uma modernidade configurada em função de uma consciência existencial distinta, perante o contexto histórico que a havia precedido. Discorre-se, assim, sobre as vanguardas racionalistas e as concepções e produções arquitetônicas do pós-guerra, marcando a transição entre a modernidade e a pós-modernidade. Sobre o conteúdo escultórico, este capítulo faz uma leitura a respeito das produções desse período, traçando um paralelo em relação às obras arquitetônicas no que tange às linguagens no campo conceitual e seus processos de concepção. Inicialmente debruça-se sobre as transformações provocadas pelas vanguardas modernas do século XX e, posteriormente, são analisados os movimentos escultóricos que compartilham com o fazer arquitetônico a postura crítica do momento histórico em questão. Tal postura marca as relações que as obras possuem com o espaço, formas, materiais e temas e propicia novas concepções linguísticas que inauguram uma ampliação do campo de atuação da escultura: levada ao espaço público das cidades, ela invade a paisagem como um todo, redefinindo o território, o contexto e a natureza.

Considerando essas manifestações a partir de suas naturezas tridimensionais e buscando apurar significados e parâmetros de análise compartilhados pela Arquitetura e pela Escultura, num processo recíproco de influências conceituais e práticas, na segunda parte da pesquisa, denominada Processos Tridimensionais, são realizadas leituras de obras arquitetônicas e escultóricas fundamentadas em novas organizações produtivas.

Partindo do repertório apresentado na primeira parte sobre os conceitos criativos, são definidos parâmetros de análise que abrangem temas fundamentais das interfaces mencionadas. Pretende-se, com isso, investigar os modos que esses campos do conhecimento – História, Filosofia, Estética, Arquitetura e Escultura – se inter-relacionam e buscar novos parâmetros para a compreensão das manifestações arquitetônicas e escultóricas a partir de um processo intersemiótico.

Após um levantamento extenso para a qualificação de obras e projetos de arquitetura e escultura, foram escolhidas aquelas consideradas mais significativas para as leituras pretendidas. São elas:

Arquitetura
Capela de Notre-Dame-du-Haut | Le Corbusier
Sydney Opera House | Jorn Utzon
Las Arboledas | Luis Barragán
Federal Center | Mies van der Rohe
Assembleia Nacional de Bangladesh | Louis I. Kahn

Escultura
Upright Internal/External Forms | Henry Moore
Spiral Jetty | Robert Smithson
Running Fence | Christo & Jeanne-Claude
Peines del Viento | Eduardo Chillida
Tilted Arc | Richard Serra

A partir dessas obras, aborda-se a singularidade da Arquitetura e da Escultura em sua natureza tridimensional e suas relações específicas com as noções de espaço e tempo. Para aprofundar o exame previamente realizado sobre as produções arquitetônicas e escultóricas que configuram o corpo da pesquisa, primeiramente foi elaborada uma extensa lista de conceitos que caracterizam a transição entre as concepções modernas e pós-modernas. Num segundo momento, para a análise efetiva das obras, foram selecionados os conceitos que mais evidenciam as relações entre essas manifestações e o modo como suas concepções influenciam-se mutuamente ao longo do tempo.

A leitura sobre as mencionadas obras explora a sua relação com a paisagem e com o lugar, buscando compreender como dialogam com o contexto inserido e as condições pré-existentes. Também são analisadas as questões referentes às diferentes noções de temporalidade dessas ações, isto é, como as representações da permanência e da transitoriedade são dadas em função dos conceitos filosóficos e estéticos, apresentados no segundo capítulo, e como suas intenções se relacionam com as expressões humanas. Por fim, são consideradas as naturezas estruturais, materiais e formais, dos objetos construídos a partir de sua realidade física constitutiva, como resultado de uma intenção criativa, bem como os fundamentos que a concretização destes elementos traz para a ideia de humanidade.

Os cinco capítulos de análise das referidas obras - Paisagem, Tempo, Estrutura, Matéria e Forma, seguem a denominação dos conceitos percebidos como os mais relevantes e que permitem avaliar os aspectos compartilhados – em acordo ou oposição – por elas. Para tanto, são apresentadas as definições dos conceitos que conduzem a leitura das obras, quais sejam:

Paisagem (Universal, Singular, Apropriada, Expandida, Unitária, Composta)
Tempo (Eterno, Transitório, Narrativo, Antinarrativo)
Estrutura (Mística, Programática, Ordenada, Desordenada)
Matéria (Artificial, Natural, Memória, Substância, Transcendente, Imanente)
Forma (Interior, Exterior, Expressiva, Representativa, Síntese, Processo)

Por meio dessa análise, buscou-se compreender as intenções e os efeitos das linguagens arquitetônicas e escultóricas a partir da reflexão sobre os repertórios reconhecidos em suas produções. Estabelecidas como signos não-verbais, são analisadas as suas características sintáticas e semânticas, envolvendo temas como o significado dos vocabulários formais utilizados, a concepção da materialidade como meio e mensagem dessas manifestações e a interpretação na natureza de suas expressões como essência do ato criativo humano despertado pela sua própria condição existencial. Procurou-se, assim, estabelecer uma estrutura de análise que propiciasse a compreensão da criação destas construções por meio dos conceitos teóricos que originaram suas intenções, significados, processos de concepção e produção, bem como por aquilo que as influenciaram e as consequências de suas realizações na contemporaneidade.

A partir dessas reflexões, espera-se que o presente estudo contribua para a elaboração de uma fundamentação teórica e crítica aprofundada sobre a complementaridade das manifestações arquitetônicas e escultóricas e suas influências diretas e indiretas. Com isso, também se pretende despertar o potencial criativo advindo da proximidade dessas duas formas de expressão, oferecendo referenciais teóricos e práticos que possam ser explorados em futuras pesquisas.

Notas:
(i) Versão original: “Our life is of a microscopical nature; it is an indivisible point which, drawn out by the powerful lenses of Time and Space, becomes considerably magnified.”


Título: Atos Tridimensionais: Manifestações da Existência. Interfaces entre a Arquitetura e a Escultura
Autor: Daniel Corsi
Ano: 2012

Dissertação apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo para obtenção do Título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo
Área de concentração | Design e Arquitetura
Orientador | Prof. Dr. Carlos Egídio Alonso
São Paulo | 2012

Link USP (versão completa da Dissertação): <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16134/tde-22082012-103651/pt-br.php>

Como citar:
Silva, Daniel Corsi da S586a Atos tridimensionais: manifestações da existência: interfaces entre a arquitetura e a escultura / Daniel Corsi da Silva. -- São Paulo, 2012. 426 p.: il. Dissertação (Mestrado - Área de Concentração: Design e Arquitetura) – FAUUSP. Orientador: Carlos Egídio Alonso 1. Arquitetura 2. Escultura I. Título CDU 72

(Textos e imagens de usos e fins exclusivamente acadêmicos)


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